Temos acompanhado ao longo dos anos uma série de alterações climáticas que acarretam eventos extremos cada vez mais frequentes no país. Estudo recente realizado por pesquisadores da UNIFESP [1] indica crescimento expressivo de eventos climáticos extremos de temperatura (calor extremo, frui extremo e amplitude abrupta de temperatura) no Brasil nas últimas décadas, em especial em estados das regiões Sul e Sudeste (crescimento de 84% em São Paulo, 100% no Rio Grande do Sul e 188% no Espírito Santo).
Eventos dessa natureza alteram regime de chuvas e ventos dada a sensibilidade desses fenômenos às condições de temperatura do ar e respectivos sistemas de pressão atmosférica, resultando em eventos extremos de chuva e vento como os observados ao longo de 2023 (chuva extrema no litoral de São Paulo, ciclones extratropicais na região Sul etc.). Desses eventos resultam impactos consideráveis em uma série de infraestruturas, com especial destaque aos sistemas de distribuição de energia elétrica.
São variados os impactos que eventos climáticos extremos podem produzir nas redes de distribuição de energia, desde variações nos montantes de perdas técnicas até redução dos níveis de qualidade do produto e do serviço, sendo este último o alvo das reflexões pretendidas neste artigo.
Diante desse cenário, a pergunta que se faz é a seguinte: o arcabouço regulatório vigente está preparado para incentivar ações que visem a promoção de sistemas de distribuição de energia elétrica resilientes ao atual contexto climático?
Primeiramente é necessário que se faça uma distinção entre os conceitos de confiabilidade e resiliência. Confiável é o adjetivo utilizado para definir uma rede que apresenta bom desempenho frente a eventos de alta probabilidade e baixo impacto, utilizando como métrica, indicadores de duração e frequência de interrupções (DEC, FEC, DIC, FIC) associados a períodos pré-estabelecidos. Resiliente é o adjetivo utilizado para definir a rede que apresenta bom desempenho frente a eventos de baixa probabilidade e grande impacto, considerando os estados de transição entre estados e com foco nos tempos prolongados de interrupção em função do tempo de recuperação da infraestrutura. Considerando que tais eventos são de baixa probabilidade, é possível que não impactem de forma significativa o comportamento dos indicadores de continuidade quando observados em base temporal contínua. Assim, pode-se afirmar que uma rede resiliente é uma rede confiável, mas uma rede com uma boa confiabilidade não necessariamente é uma rede resiliente.
No Brasil, a regulação da qualidade do serviço não tem como foco a promoção de redes resilientes, tendo em vista o impacto tarifário que investimentos para a preparação do sistema para responder a eventos extremos pode produzir. Prova disso é a instituição do conceito de Interrupção em Situação de Emergência – ISE, que caracteriza e expurga do cálculo de indicadores de qualidade do serviço eventos associados à Decreto de Declaração de Situação de Emergência ou Estado de Calamidade Pública emitido por órgão competente ou eventos produzam volume expressivo de clientes-hora interrompidos, conforme definido no Módulo 1 do PRODIST. Com o já citado aumento de eventos climáticos extremos no país, é importante que o setor se atente aos impactos possíveis e as respectivas adaptações regulatórias necessárias para a garantia da qualidade do serviço, a despeito de eventuais aumentos em custos de manutenção. [2]
REFLEXÕES
Segundo estudo realizado para o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) [4], as ações referentes à melhoria de resiliência da rede podem ser divididas em três grandes partes:
- Reforço de rede: via abordagens tradicionais, como substituição de postes, enterramento de ativos e desenvolvimento de defesas contra inundações;
- Incentivos para desenvolver maior flexibilidade do sistema: por meio de investimentos em redundância, reconfiguração de rede, recursos de energia distribuída (RED), microrredes e participação dos clientes para limitar o impacto de eventos extremos (através de programas de resposta da demanda);
- Intensificação da eficácia de restauração: com o aumento de recursos para reduzir ao mínimo o tempo de interrupção.
No que se refere aos reforços rede, entende-se que a regulação atual para a remuneração dos investimentos contempla os requisitos necessários para que sejam suportados maiores investimentos em reforços de rede. Assim, as concessionárias podem incorporar em seus planos de investimentos critérios de redes mais robustas em áreas críticas, desde que tecnicamente fundamentadas, para posterior justificativa dos investimentos a serem realizados, caso seja necessário.
Sob o ponto de vista do aumento da flexibilidade do sistema, podem ser consideradas soluções de automação de rede, uso de Recursos Energéticos Distribuídos, prestação de serviços ancilares e gestão de processos e pessoas. Entende-se, porém, que na regulação atual há um desincentivo na adoção de novas tecnologias em função do descasamento entre o investimento e sua remuneração no tempo, já que estes investimentos usualmente envolvem a adoção de equipamentos como sistemas de telecomunicações e TI, os quais possuem tempo de vida útil menores que os considerados regulatoriamente em virtude principalmente da obsolescência tecnológica dos dispositivos.
Isso pode ser corrigido através da adoção de uma das seguintes medidas (já são adotadas em alguns países que desejam incentivar a maior flexibilidade da rede):
- Diminuição do tempo de vida útil regulatória;
- Reconhecimento prévio de investimentos em novas tecnologias com aprovação de um plano de investimentos e remuneração dentro do ciclo tarifário, ou;
- WACC específico para esse tipo de investimento.
No sentido de atuar na questão da restauração dos serviços de energia elétrica de maneira mais rápida, sugere-se a adoção de Grupos de Assistência Mútua, já em prática em países como Japão e Estados Unidos.
Uma questão que provavelmente pode dificultar a adoção do conceito de assistência mútua diz respeito à sua financiabilidade. Esse método de restauração rápida da operação da rede é caro, mas provavelmente menos dispendioso do que ter mais funcionários disponíveis para as eventualidades.
Em se tratando de custos de OPEX, entende-se ser possível incorporar tais montantes nos custos normais das empresas, e que estes sejam devidamente reconhecidos pelo regulador. Em caso do acionamento do mecanismo de assistência mútua, os gastos adicionais da distribuidora com esses recursos se transformariam em componente financeiro da tarifa, sendo compensado no próximo reajuste tarifário anual.
Nos casos em há necessidade de reforço das turmas operacionais permanentes das distribuidoras, sugere-se que seja incorporado ao cálculo do benchmark via DEA – Data Envelopement Analysis, o input de Riscos Ambientais, que seria considerado nas análises de eficiência da distribuidora, já adicionado o OPEX relacionado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O assunto resiliência de redes elétricas apesar de antigo, tomou outras dimensões com os atuais eventos climáticos (ex: ciclone-bomba), de modo que todo material e casos analisados são relativamente recentes, existindo uma série de vertentes a serem estudadas.
Estudo recente realizado pela Sinapsis em pareceria com Climatempo para o Banco Interamericano de Desenvolvimento traz um recorte do impacto das questões climáticas no planejamento e operação de redes elétricas, focando na absorção e recuperação de impactos e como isso afeta o tempo de interrupção do serviço. O estudo envolveu o cruzamento de diversas bases endógenas e exógenas ao sistema elétrico, não usualmente relacionadas, sob as quais foram montadas regressões para correlacionar eventos, características de rede, operação do sistema e impactos na rede, com o intuito de identificar, promover e avaliar opções de melhoria.
Salienta-se, por fim, que caberá ao agente regulador, aos consumidores e às próprias empresas distribuidoras, compreender melhor o processo das mudanças climáticas, de forma que o desenvolvimento e a manutenção dos recursos necessários para lidar com esses eventos justifiquem significativos custos iniciais e contínuos. Também é necessário entender que a capacidade inexplorada que permanecerá durante os períodos sem eventos não deve ser interpretada como desperdício de investimento. Variações nos padrões de temperatura, precipitação, vento e insolação ao longo do território nacional, além dos possíveis danos ocasionados por eventos extremos, como secas, enchentes e ciclones podem impactar a disponibilidade dos serviços de distribuição e da oferta de energia. Sendo assim, é necessário que tanto os empreendimentos quanto a infraestrutura de energia revisem sua vulnerabilidade a tais fenômenos e assegurem que o sistema elétrico seja mais resiliente aos mesmos.
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BIBLIOGRAFIA
[1] Sanches, F.H.C., Martins, F.R., Conti, W.R.P. et al. The increase in intensity and frequency of surface air temperature extremes throughout the western South Atlantic coast. Sci Rep 13, 6293 (2023). https://doi.org/10.1038/s41598-023-32722-1
[2] ANEEL. Agência Nacional de Energia Elétrica. Procedimentos de Distribuição de Energia Elétrica no Sistema Elétrico Nacional – PRODIST Módulo 1 – Glossário de Termos Técnicos do PRODIST, 2021.
[3] ANEEL. Agência Nacional de Energia Elétrica. Procedimentos de Distribuição de Energia Elétrica no Sistema Elétrico Nacional – PRODIST Módulo 8 – Qualidade da Energia Elétrica, 2021.[4] SINAPSIS; CLIMATEMPO. “Implementação de tecnologias inovadoras para melhoria de qualidade da distribuição considerando resiliência às mudanças climáticas – Relatório Final”. Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, 2021. https://www.iadb.org/Document.cfm?id=EZSHARE-1288692092-6